#09 As bonecas de Elena Ferrante
O ano era 1999, na virada do século uma menina enrola a barbie novinha em folha com fita veda rosca, aquela de vedar vazamento d’água em torneiras e canos. Depois de enrolar desde o pé em pontas de bailarina até o último fio de cabelo loiro platinado e liso, ela sobe na cama e em algumas tentativas consegue jogar o corpo da boneca lá em cima do guarda-roupa, é onde moram as teias de aranha, que com sorte vão tomar de conta do pacote e em poucas semanas ela terá o que deseja: uma barbie múmia.
Alguns anos depois, a criança raspa o cabelo da boneca e com retalhos recolhidos dos arredores da máquina de costura da avó, enfia as tiras de tecido nos cortes que fizeram no couro cabeludo com a tesoura sem ponta, “olha, minha boneca tem leucemia que nem a Camila de Laços de Família”. Mas ela não parou por aí, teve ainda o velório e enterro de uma fofolete cuja cabeça voou e o e o batizado das bonecas de todas as meninas da rua, o namorado da madrinha serviu de padre, uma bacia com água da torneira e um ramo de samambaia compuseram a cena. Ninguém avisou ao verdadeiro padre do bairro.
O furor nas redes sociais com o filme Barbie da diretora Greta Gerwig me fez lembrar algumas histórias com bonecas, além das minhas próprias narrativas infantis, bastante reveladoras do que viria, me apareceu Elena Ferrante, que em muitos de seus livros usa das bonecas como significante, no sentido lacaniano do termo. Enquanto que para a linguística um significante remete a um significado, para Lacan, um significante só produz significação quando articulado, assim, a boneca desliza numa cadeia de significados, como algo que aponta para o que nunca será completo de sentido.
Em A filha perdida1, Leda é uma mulher que, chegando à velhice, rouba a boneca de uma garotinha e apesar de testemunhar o desespero da criança, mantém refém o objeto, brinca como se fosse ela mesma uma menina. Tem algo de sinistro nos cuidados que direciona à boneca e, não por acaso, o título da obra em italiano é La figlia obscura. Penso que é o sem sentido da cena que provoca angústia, esse sentimento que não mente.
Na tetralogia napolitana2, a amizade de Lila e Lenu se inicia quando da troca de bonecas, Nu e Tina, e a subsequente defenestração de Nu por Lila e a reação de Lenu, que fez o mesmo com a boneca de Lila. As meninas descem as escadas em busca das bonecas e não encontram no escuro do porão, quase seis décadas depois a luz do porão é acesa e o mistério revelado. Em Frantumaglia3 a autora italiana explica que a ideia de escrever a história de duas amigas nasceu justamente com Leda, ela diz que “não é por acaso que encontramos repetições nas duas obras. Uma amizade que começa com o jogo pérfido das bonecas e termina com a perda de uma filha.”
Temos ainda Uma noite na praia4, história para crianças um tanto assustadora sobre Celina, a boneca perdida e um capitão que tenta lhe roubar as palavras que recebeu da menina sua mãe, Mati. Através do lúdico, Ferrante nos assombra, a criatura perdida noite adentro corre riscos imensos, só não maiores que o ciúmes que sente do gato que a menina adotou. E como tenho desde pequena um medo quase patológico de bonecas que ganham vida, fiquei na dúvida se é mesmo uma história infantil.
Mas Ferrante não está sozinha na convocação de bonecas, há poucos meses li Os abismos5 de Pilar Quintana e me espantei com a criança narradora cuja boneca comete suicídio ao se atirar (ou ser atirada) no abismo; quando perguntada, a menina responde “Ela se jogou. Por quê? Porque não queria mais viver. Tem gente que quer morrer.” Assim como as bonecas perdidas de Ferrante, Paulina, a boneca de Quintana, tem um toque do indizível, do que não se articula em palavra e, por isso, comunica em ato. Na mesma época, li um texto de Lacan6 sobre como o sintoma da criança responde ao que há de sintomático na estrutura familiar, talvez o suicídio da boneca de Claudia conta sobre os adultos que lhe circundam e os abismos dos quais fogem ou que buscam.
Ferrante, em A filha perdida, nos diz que “uma mãe não é nada além de uma filha que brinca”, o que me recorda uma bisavó que ao fim da vida, com seus quase cem anos, ninava bonecas de dentro da rede na qual passava longas horas do dia. Lembro da curiosidade ao ver uma idosa brincar, eu que já não queria saber de bonecas me vi assombrada pela possibilidade de retorno a esse lugar, como um ciclo que começa e termina no mesmo ponto. Tantos anos depois ainda me pergunto se o cuidado com o qual ela tratava a boneca era novo, já que em sua filha, uma avó que eu conhecia, havia uma aridez característica que me fazia achar que ela nunca conhecera o amor materno. Mas, talvez nem tudo seja culpa da mãe.
O que me parece, para além do reforço dos estereótipos de gênero que associam o feminino ao cuidado, é que bonecas dão notícia sobre um outro ambivalente, que é simultaneamente amado e odiado, que é amor e horror ao mesmo tempo, como pode ser a relação mãe e filha. Ao longo da vida, nos confrontaremos inúmeras vezes com esse sentimento. E é essa complexidade das experiências de mulheres que Ferrante narra, porque como ela mesma diz em Frantumaglia: "Sei pouco sobre a simbologia das bonecas, mas estou convencida de que não são apenas a miniaturização do ser filha. As bonecas nos sintetizam como mulheres, em todos os papéis que o patriarcado nos atribuiu."
Então, me pergunto: o que é uma boneca para uma menina? Já que é preciso compreender o ao redor para significar qualquer coisa, me parece que uma boneca é sempre uma para cada menina. Não é possível universalizar a experiência, apesar das semelhanças possíveis que narramos depois de adultas, o que conseguimos, ao mergulhar na linguagem, é articular sentidos que podem ser partilhados. Mas, há sempre algo de singular que não encontra representação coletiva. Essa é para mim a solidão mais bonita de tornar-se mulher.
FERRANTE, Elena. A filha perdida. Trad. Marcello Lino. Editora Intrinseca, 2016.
FERRANTE, Elena. A amiga genial: infância, adolescência. Trad. Maurício Santana Dias. Globo Livros, 2015.
_________________. História do novo sobrenome. Trad.Maurício Santana Dias. Rio de Janeiro: Globo, 2015.
_________________. História de quem foge e de quem fica. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016
_________________. História da menina perdida: Maturidade-Velhice. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.
FERRANTE, Elena. Frantumaglia: os caminhos de uma escritora. Trad. Marcello Lino. Editora Intrinseca, 2017.
FERRANTE, Elena. Uma noite na praia. Trad. Marcello Lino. Editora Intrínseca, 2016.
QUINTANA, Pilar. Os abismos. Trad. Elisa Menezes. Editora Intrínseca, 2022.
LACAN, Jacques. Nota sobre a criança. In: Outros Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Editora Zahar, 2003.
Assustador, demais! Também nos contos que escrevo, a boneca Lila às vezes se personifica, nina a assustada protagonista ou lhe conta histórias.