Sobre o direito de doer
Outro dia me trataram mal e chorei, chorei, assim, de súbito, fui engolida por lágrimas e uma sensação dolorida, me senti machucada. Isso seria inimaginável há alguns anos, quando a diretriz da minha vida era o Rocky Balboa dizendo que não importa o quanto você bate, mas sim o quanto aguenta apanhar e continuar. Era assim que me guiava nas pequenas e grandes dimensões, nos planos de curto e longo prazo, tudo girava em torno de suportar, de ser dura o suficiente para levar pancada e não quebrar, e manter-se em estado de guerra. Então, se alguém me tratasse mal, não doeria nada, não faria um arranhão sequer, porque já havia aguentado coisas piores e a resposta seria suportar, não espedaçar. Nessa lógica perdi a noção dos limites, lidei com agressão física como banalidade, porque pensava que se aguentei apanhar no corpo, nada poderia me alcançar no mundo das palavras.
Mas, depois de tanta água que correu na minha vida e na construção dos limites como ser humano, chorei porque fui destratada. E não acho ruim, na verdade, é uma enorme vitória que eu seja capaz de sentir muito que alguém me trate mal. Porque finalmente não me vejo mais como alguém que tem o dever de suportar tudo e que não tem o direito de doer. Agora me penso como pessoa que sente e que no contato com as outras pessoas, pode ser afetada de diferentes formas. E o mais importante, que reconhece o destrato porque sabe o que é ser bem tratada.
É possível analisar o modo como enxergamos a relação do Eu com o Outro a partir de diferentes chaves explicativas. Os feminismos, por exemplo, perguntam sobre o lugar de mulher e como a socialização de mulheres brancas lhes nega a autonomia. A psicanálise, por outro lado, pergunta sobre o lugar de sujeito, como é que a história que se carrega leva a repetição de certos roteiros. Acho que tem um entrelaçamento, mas, o que aparece primeiro quando penso nos porquês de ter optado por uma vida rocky balboa é a origem social. Num contexto de escassez a sobrevivência pode ser mais importante que os sentimentos, consegui entender melhor depois de ler Elena Ferrante e Annie Ernaux.
Na tetralogia napolitana temos uma narradora, Lenu, que cresceu num bairro pobre de Nápoles e ascendeu socialmente através dos estudos e depois, da escrita. Conseguiu fazer universidade nos anos 60, raridade no período, e depois, sustentar-se escrevendo, ainda mais difícil. As passagens em que Lenu conta de seu estrangeirismo nos espaços sociais da intelectualidade de classe média me atravessavam como facas, eu conheço esse lugar. Num enredo semelhante, Ernaux narra a si mesma em várias obras como uma filha da classe trabalhadora que se distanciou da família através dos estudos mas nunca ocupou, de fato, o lugar da intelectualidade de berço. Ler essas mulheres estranhando e sendo estranhadas porque nasceram no mundo proletário e chegaram ao mundo dos livros permitiu que eu refletisse sobre minha própria trajetória.
Sempre chamou atenção como elas diferenciavam o mundo de onde vieram com o mundo no qual estavam a partir de uma certa dureza, os sentimentos eram tratados de formas opostas nesses dois mundos. Ferrante demarca essa diferença na própria língua, o dialeto napolitano aparece como sinal de violência e animalidade, os vínculos carregados de afetos condenados na parte alta da cidade. E Ernaux chama a si mesma de “trânsfuga de classe”, tentando dar contorno aos marcadores de diferença social que lhe mantiveram num lugar ao mesmo tempo dentro e fora.
Porém, a questão tem mais camadas que o estranhamento social, diz respeito à permissão da dor. Nós que crescemos em famílias que literalmente batalham para sobreviver podemos nos tornar, o que foi meu caso, eternos gladiadores. Nos habituamos à tensão constante de ter de brigar, apanhar, bater, defender, atacar. Porém, não nos permitimos doer, não há tempo para sofrimentos emocionais, é sempre “engole o choro” e segue adiante. Sentir porque foi destratada é visto como luxo, supérfluo, desnecessário, o mais importante é manter-se viva e de pé. Nos constituímos como pessoas a partir dessa gramática bélica que é, no fim das contas, exaustiva de sustentar. Viver em alerta e pronta para levar porrada pode ser cada vez tão pesado, que se torna insuportável.
Lembro que li bell hooks falando sobre o amor e me peguei devaneando sobre o que significava esse amor, que não é o romântico, e é capaz de feitos miraculosos. Lembro também que ao longo da vida senti diversas vezes inveja de pessoas sensíveis e amorosas, pessoas que falam manso e conseguem acolher os outros, porque me via como o oposto disso. Esse amor no trato com o outro me parecia inalcançável. Ainda não o alcancei, é verdade, sigo alguém de fala assertiva e por vezes, dura demais, mas tenho o compromisso em criar novas formas de viver. Um dos efeitos desse compromisso de anos é que, aos poucos, me autorizo a doer.
Acho que quando alguém diz, por exemplo, que apanhou dos pais e não morreu, que as gerações atuais são muito frágeis, pode ser uma tentativa de defender esse belicismo como método de vida, porque é doloroso reconhecer a própria vulnerabilidade e as marcas da violência, negligência e desamparo. Depois de atravessar esses caminhos aprendi que gosto de ser uma criatura firme, de me erguer, de ser uma mulher também vertical, mas, não quero seguir por esses rumos que levam, em último caso, à desumanização.
Fui machucada com palavras e não me considero uma pessoa fraca, sou apenas alguém que tem a capacidade de sentir. Chorei algo doloroso, me senti injustiçada, fiquei triste. E agora estou tranquila, porque estou inventando uma outra gramática de afetos, faço a escolha política de manter dos meus antepassados aquilo que considero fértil e abandonar o que é sofrido demais para carregar. Penso que assim honro as pessoas que me antecederam e, devido às condições terríveis de sobrevivência, não puderam viver seus afetos, sofrimentos inclusos, de uma forma razoavelmente sadia. Assim eu invento uma mulher que reivindica a própria humanidade e com ela vou mais longe.
Ananda, eu me reconheço tanto nessa tua escrita estranha e visceral que possivelmente escreveria algo semelhante. Embora sempre posta nesse lugar da força, e bem ensinada pela vida que tive, trato minha sensibilidade como uma jóia preciosa nessa caixinha do meu ser.
Impactada com sua escrita frankenstein, Ananda, mas também me reconhecendo!