O que fazer quando não gostam da gente
Na minha família tinha um negócio de que todo desgostar alheio era inveja, se alguém chegasse contando de um conflito na escola, no trabalho, vizinhança ou parente do outro lado, com certeza era porque a pessoa que desgostava de um de nós tinha inveja. Isso era tão marcado que vira e mexe alguém adoecia, um mal súbito inexplicável, sono absoluto, um terçol, furúnculo ou espinha na ponta do nariz, era quebrante na certa, inveja pesada. Enquanto fui parte da família acreditei nisso. Todas as brigas que tive no fundamental I eram resultado da imensurável inveja que as colegas tinham da minha inteligência e desenvoltura. Só podia ser, nada mais explicava o bullying escroto que eu sofria, os bate-bocas no final da aula e as picuinhas sempre que levantava a mão para perguntar. Se eu não era suportada, provavelmente decorria da bendita inveja que o outro sentia, ou melhor, a outra, porque em geral, as invejosas eram do gênero feminino.
Quando mudei de escola resolvi deixar para trás o histórico de sofrimento e tentei fazer amigos, mas esqueci de dizer meu segundo nome no lugar do primeiro e não teve jeito, a história se repetia. Logo vi que ali também teriam inveja, afinal, a melhor aluna da turma era boa, mas não era melhor que eu. Foram longos meses de disputa pelo primeiro lugar no ranking de melhores alunos, amarguei uma segunda colocação convencida de que a inveja da terceira e primeira tinha me agourado.
No ano seguinte apareceu uma menina que desde o primeiro dia me odiava e comecei, finalmente, a me perguntar por que não gostavam de mim. Fui me dando conta de que quem gostava, o fazia com um certo esforço, foi quando a ficção familiar se espatifou. Constatei que aquela que me odiava era uma menina como eu, com uma história, sentimentos e ideias, uma criatura completa e que ocupava tanto espaço quanto tudo que eu era. Amei aquela menina que me odiava porque ela existia inteira e não fazia questão de mim, repudiava minha insistência em demonstrar que sabia, minhas irritações quando contrariada e rabugices de criança idosa. A amei porque me mostrou o quão horrível eu era. Daquela menina em diante tive de encarar o quão feia sou e aceitar que ninguém ou quase ninguém tem inveja de mim, porque ser quem sou na real é insuportável para qualquer outra pessoa e eu mesma mal dou conta disso.
Poucos anos depois aprendi algo ainda mais surpreendente, além de não ser inveja e a rejeição alheia quase sempre ser justificada, incrivelmente tem gente que me ama mesmo assim. Se eu fizer algum esforço em ser menos sabichona, autoritária, teimosa e intransigente, há quem escolha me amar. Às vezes me amam mesmo quando não consigo deixar de ser assim. Acho impressionante, inesperado e me sinto diante de algum milagre sempre que uma amiga, dessas que eu não respondo no whatsapp porque esqueço ou porque estou exausta, que passo muito tempo sem ver porque moram longe, que já estiveram ao meu lado mesmo quando estou de tpm, me diz com palavras sinceras que me ama. Eu não mereço, tenho consciência disso.
Mas elas me amam e me ensinam que posso suportar que não gostem de mim, há quem gosta e ri do humor flutuante, dos áudios rindo de desespero, dos textos que escrevo, dos livros que indico, dos bolos que faço e, principalmente, da amiga que sou. Foi a menina que me odiou na sétima série que me ensinou que eu teria de fazer por onde me amassem, que fora da minha família, organizada no pacto da justificativa de inveja alheia, eu teria de ser alguém melhor. Sigo falhando nisso, mas tento e lembro sempre de outra menina que me perguntou “você não entende, que a gente tá te falando porque gosta de você?”. Quando a gente gosta, a gente fala. Eu esqueço, mas lembro.
Eu amo muito você e amo a sua escrita feminina, essa pegada sensível e sincera de momentos de todas nós.
Lindo texto. Retrato fiel de muitas infâncias.