Wandinha Addams e as vantagens de ser uma mulher artista
No último fim de semana mergulhei na primeira temporada de “Wandinha”, série da Netflix dirigida por Tim Burton, sobre a primogênita da família Addams numa investigação perigosa de assassinatos ocorridos numa pequena cidade, vizinha do internato Nunca Mais, para onde ela é levada após ser expulsa de uma escola pela oitava vez.
Fiquei absolutamente fascinada pela personagem, como há tempos não sentia. Wandinha tem dificuldades em lidar com os próprios sentimentos e uma verdadeira aversão ao contato e proximidade com o outro, mas, ela tem também algo que é raro, uma percepção aguçada de si mesma que reduz consideravelmente os poderes de outras pessoas em definir ou determinar quem ela é.
Enquanto assistia lembrei de Audre Lorde, “se eu não tivesse me definido para mim mesma, teria sido esmagada pelas fantasias que outras pessoas fazem de mim e teria sido comida viva”, obviamente somos influenciados pelo olhar do outro, pela percepção que o outro tem sobre quem somos, mas, definir-se, ou em outros termos, falar de si, pode ser uma ferramenta para não perder os próprios contornos pela palavra do outro.
Wandinha tem pela frente o aprendizado de dar o devido lugar às pessoas e afetos, porém, aprendeu muito cedo a importância de sustentar a própria estranheza, como diz a seu pai, “você me ensinou a ser forte e independente, como navegar em um mundo repleto de traição e preconceito, você é a razão de que entendo o quanto é imperativo que eu nunca me perca de vista”. Acho que essa é uma lição preciosa para meninas.
A socialização feminina, especialmente de mulheres brancas e escolarizadas, se estrutura de modo que esteja no outro a possibilidade de satisfação, realização e proteção. Uma existência voltada a esse outro masculino que haverá de entregar o que falta, sob o preço de ser agradado, de que uma menina se torne a mulher adequada ao prêmio do casamento e da maternidade. É bastante comum ouvir de mulheres socialmente privilegiadas um discurso de dependência da aprovação e reconhecimento alheios, como se não soubessem usar das próprias ferramentas e até mesmo dos privilégios que possuem, para fazer algo sobre e para si.
Penso que essa é uma estratégia bastante eficiente no patriarcado moderno, aquelas poucas que têm direitos básicos garantidos e pela estrutura racista, são beneficiadas, não conseguirem utilizar de todo o capital educacional, cultural e político disponível para romper com as desigualdades, porque estão mais preocupadas em atender às expectativas sociais e receber os prêmios e reconhecimentos da ilusória mulher universal.
A menina da família Addams, que tem sido alvo de preconceito por ser diferente, chega à adolescência convencida de que não há lugar possível na ficção conciliatória entre “normais e excluídos”; em uma cena emblemática, equipara a diretora da escola com o prefeito da cidade, que trabalham para manter as aparências de integração, varrendo para debaixo do tapete uma história de discriminação, violência e mentiras. A crítica de Wandinha vale para muitas situações, e com certeza é útil para mulheres que ainda acreditam na possibilidade de adequação, de tornar-se adequada para ser ouvida, vista e levada em consideração, e em última instância, amada.
O que me lembrou a obra “As vantagens de ser uma mulher artista”, do coletivo Guerrila Girls, porque se encararmos a realidade de existir sendo mulher num mundo patriarcal, ao invés de tentar usar das ferramentas do senhor, podemos ridicularizá-las, distorcê-las, deformá-las, para construir coisas diferentes. Renunciar ao ideal de ser amada como uma mulher adequada nos permite criar e rir das ficções políticas masculinas. Um feminismo que recusa a conciliação é, ao meu ver, o único que pode realmente romper com as estruturas, foi o que Wandinha me lembrou, sendo ela mesma, uma mulher artista.