Ler vários livros ao mesmo tempo pode ser um desastre, principalmente se você não se incomodar com as confusões que acontecem. Como eu não me incomodo e até mesmo gosto de estar num conto do Cortázar, tenho o hábito de ler inúmeras obras simultaneamente.
Acontece bastante de não saber mais de qual história é uma determinada frase ou cena, e até mesmo acontece de eu inventar uma versão só minha misturando ficções alheias e sonhos que tive (há mais de dez anos tenho uma história na cabeça que não sei se é minha, uma mistura de três livros ou um sonho). Mas, acontece também de os livros, não por acaso, conversarem. E aí, é uma explosão.
Numa noite de janeiro estava folheando os livros que chegaram: “Balanço final” da Beauvoir, porque planejo ler toda a sua bibliografia; “O tempo, esse grande escultor” da Marguerite Yourcenar porque “Memórias de Adriano” está na lista da Ferrante; “A festa ao ar livre e outras histórias” da Katherine Mansfield, porque Virginia Woolf cita Mansfield em seus diários e sou assombrada por um trecho sobre saúde; e “Ao mesmo tempo” da Sontag, porque estou há meses obcecada em ler tudo que ela escreveu.
Meus livros fazem muito sentido, uma pilhas deles é um texto, contando a história dos caminhos que tenho percorrido em busca de palavras que manifestem. E essa pilha, que eu estava apenas dando uma olhada, conhecendo as edições, lendo prefácios, tilintou algo no meu ouvido.
I
"O que me salvou quando menina no Arizona à espera de ficar adulta, à espera da hora de fugir para uma realidade mais ampla, foi a leitura de livros. Ter acesso à literatura, à literatura do mundo, era escapar da prisão da frivolidade nacional, do mau gosto, do provincianismo compulsório, da educação vazia, dos destinos imperfeitos e da má sorte". Era Sontag citada pelo próprio filho, David Rieff, no prefácio de “Ao mesmo tempo”. Guardei. Mas já abri uma pasta no meu juízo organizado em círculos.
II
Eis que Beauvoir, no seu tom muito sério escrutinando as próprias memórias, fazendo análises contrafactuais: "Eles me ofereceram a leitura como principal distração, divertimento pouco oneroso. Amei os livros apaixonadamente. Satisfaziam em mim uma curiosidade que está presente em minhas lembranças mais remotas e que nunca cessou. De onde me vem ela exatamente?"
Duas mulheres que atravessaram o século XX com seus corpos de mulher e mentes sobre-humanas, duas escritoras que leio com espanto e deleite, uma quase devoção ao que há de tão sólido e firme. A percepção que elas tinham sobre a leitura livrou ambas do destino feminino e lhes ofereceu uma brecha, um rasgo pelo qual passar e fugir, isso me enternece.
Me faz acessar uma memória antiga, de quando tinha oito anos. No começo das férias ganhei um livro de português da minha madrinha, para responder ao longo dos dias. Era um livro didático, que costuma ser trabalhado em um ano escolar, palavra livre, de capa verde e ilustrações características. Ao final das férias e do livro, fiquei tão emocionada com a viagem que chorei e não satisfeita com o choro, circulei a lágrima derramada na última página e marquei com um beijo. Literalmente me enamorei do livro, a cena infantil anunciava o resto da vida.
Talvez por isso a Tetralogia Napolitana me mobilizou tanto e, mais recentemente, “O lugar” da Annie Ernaux. Histórias sobre meninas desafortunadas que se agarram nos livros para sobreviver, que através deles, vivem. Essas histórias produzem ecos.
Notas
[1] Escrevi sob o som de “my blueberry nights”, uma playlist que dei nome sem lembrar do filme com a norah jones, mas que depois entendi que lembrei sim, só não lembrava que lembrava.
[2] Na HBO tem o documentário sobre a Sontag que saiu em 2014. Aqui o trailer.
[3] Li o volume I dos diários dela e fica a recomendação, é particularmente espantoso como ainda muito nova Sontag tinha clareza sobre a intelectual que desejava ser e os caminhos que deveria percorrer para construir esse alguém. Não por acaso, o primeiro volume foi nomeado “reborn”.
[4] Outra obra que aborda a relação íntima com livros é “Encaixotando minha biblioteca” do Alberto Manguel, mas desse eu falo outro dia.
está muito bem acompanhada no quesito leituras! :)
Tua escrita me emociona e não somente porque tu me citas ( entre tantas potências femininas que te nutrem), mas porque me reenconto nos teus assombramentos ( como é possível que tu não tenhas saído do meu ventre?!).
Também fui e sou essa menina salva pelos livros que por mim passaram, enquanto o rio de lama da rua sete queria me engolir. Eu me agarrava neles e não sucumbia. Também me apaixonava e tinha febre quando não lia em um dia só. Sete anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez foi o meu caso mais sério, e se tiver tempo vou escrever sobre. Beijo, Ananda ! Amo te ler ❤️