O mapa para casa
“Sua história sempre me fez pensar na memória de nós, mulheres. Que também é queimada, silenciada, deturpada. Apesar dos horrores cometidos na nossa pele, nós, mulheres, tivemos força para superar a infame tradição do silêncio. Nossa língua é o código do nosso coração pulsante. Em meu mapa, marco um colar de corações. Por todas as mulheres que estão tomando a palavra, apesar de mil dificuldades. Para minha mãe, que sempre soube tomá-la quando necessário. Pela minha escrita de hoje, que muito deve àquelas vozes de coragem” (Igiaba Scego, trad. Francesca Cricelli)
Ao ler Igiaba Scego (Minha casa é onde estou, tradução de Francesca Cricelli), uma mulher afroitaliana marcada pela diáspora somali, não pude deixar de pensar nas minhas próprias marcas de migração. A partir do mapa de Roma, Igiaba costura as histórias, lembranças e imagens de sua família que teve de migrar da Somália por causa da didatura e da guerra. E, apesar da dureza e sofrimento que ela e os seus viveram, o fio que conduz o livro é de afeto e riqueza, ela nos conta sobre humanidade diante da desumanização racista e colonial. E através de sua escrita, pude pensar os rumos dos quais venho.
Um dos meus avôs nasceu e cresceu no Ceará, mas migrou para o Piauí em algum momento do século XX, na minha memória de criança permaneceu a imagem dele adolescente atravessando o sertão deixando sua mãe, de quem herdei as iniciais, para trás. Não sei se alguém me contou, talvez foi a invenção da lembrança, mas foi o que ficou e fez efeito. Com ele aprendi a gostar de banana na comida e rapadura depois do almoço, a dar gosto sendo uma criança que comia bem. Só depois de adulta me perguntei se meu avô passou fome e o que poderia significar aquela satisfação que ele tinha ao ver os netos raspando o prato. Meu marido costuma dizer que saí do sertão, mas o sertão não saiu de mim, porque me preocupo com comida em qualquer circunstância que envolva sair de casa e porque um dos meus maiores prazeres é fazer supermercado. Meu avô viveu comigo por apenas nove anos e nove meses, e por isso ele está tão presente em quem sou, uma versão dele que criei para mim nas duas décadas seguintes à sua morte acompanha meus passos, como se eu ainda estivesse caminhando a travessia do sertão que ele começou. Meu avô João foi atropelado num domingo de 2004, estava a caminho da padaria de bicicleta, como fazia todos os dias, ele não foi socorrido em tempo oportuno e morreu aos 75 anos.
No dia anterior havia morrido mais um avô, perdi os dois em um fim de semana e desde então tenho mais medo da morte das pessoas do que da minha própria. O avô que se foi no sábado morreu do coração, e essa me parece uma grande ironia, porque o coração que fisicamente não deu conta de bater foi que me ensinou o quão grande pode ser o coração de um homem. Ele era o pai da minha madrinha, que nunca me batizou na igreja, mas me batizou com a palavra, e era o avô que me contava histórias infinitas, fazia meus gostos de criança e tentava me ensinar a descascar laranja sem quebrar. Ele era apaixonado pela minha avó mesmo décadas depois de casados, apenas depois que eu mesma casei que compreendi, buscava pra mim um marido que lembrasse o carinho que ele oferecia a ela, mesmo crescendo diante de inúmeros casais sem amor, neles eu vi o lampejo do que é escolher a vida. Meu avô Salomão teve um infarto em um sábado de 2004, não foi socorrido a tempo porque a rua na qual eu cresci estava alagada depois de uma chuva e nenhum carro passava, nenhuma pessoa atravessava a água. Ele tinha 59 anos.
Ano que vem eu faço trinta e me perguntei diversas vezes como teria sido a vida se meus dois avôs não tivessem morrido naquele fim de semana, nunca saberei, mas teimo em imaginar que eles teriam ficado felizes ao me ver formada e depois mestra, que eles teriam apoiado quando fui estudar em um internato aos treze anos, que se eu tiver uma criança, ela poderia ter bisavôs. Mas nada disso existe porque suas vidas não foram salvas e eu fiquei órfã de avô. Foi nessa época que a raiva em mim tomou forma, de algum modo a morte deles me deixou alerta para o imperativo de reivindicar o direito à vida. Aos dez anos eu pensava em ser juíza, porque achava que ocupando o lugar de maior prestígio social que eu conhecia, ninguém ao redor morreria assim, esperando o socorro. Não fiz direito, muito menos virei juíza, mas, curiosamente, eu trabalho no SUS. Passei anos me perguntando se estava no lugar certo, já que estudei ciência política e nunca cogitei trabalhar com saúde antes, hoje sei que estou trabalhando para ninguém morrer esperando socorro, não apenas quem está ao meu redor.
"Não pode voltar, não pode saciar a sede da sua angústia. O exilado é uma criatura dividida. As raízes foram arrancadas, a vida foi mutilada, a esperança eviscerada, o princípio separado, a identidade despida. Parece não ter sobrado nada. Ameaças, dentes crispados, maldade. Mas depois há um lampejo. O que faz a gente mudar de perspectiva." (Igiaba Scego, trad. Francesca Cricelli)
Como Igiaba Scego, sou uma encruzilhada, eu acho. Venho de pessoas que migraram geração após geração em busca de sobreviver. E, apesar das condições melhores em decorrência da escolaridade, não vejo muita diferença entre a Ananda que migra pela terceira vez e os antepassados que cruzaram estradas de chão batido em busca de emprego. Eu sou o eco do meu avô que seguiu do Ceará rumo ao Piauí, da minha avó que foi de Demerval Lobão para Teresina, do outro avô que cruzou o Pernambuco, da avó que fugiu de Alto Longá, eu reedito agora os meus tios e tias que migraram para Brasília, eu refaço o caminho dos meus pais. E foi nesses dias de fazer mudança que me dei conta, em Teresina nasci e aprendi a escrever, mas foi em Brasília que aprendi a falar, talvez isso signifique alguma coisa. Assim como significa muito que em São Luís me fiz sujeita da minha história, direcionei o barco e encontrei um cais. Igiaba me ofereceu um mapa, “minha casa é onde estou”, e aceito agradecida a transmissão, ela me mostra que sou meu próprio lar, construída por muitas mãos e afetos, uma casa infinda, em movimento e renovação. Agora a casa-corpo-eu se lança rumo ao desconhecido, porque o mais importante é que ela tem para onde voltar.
Sua escrita me trouxe tantas lembranças que me fez chorar. O meu coração, você sabe, é seu lar ternamente eternamente, assim como nos abrigamos no coração do seu avô Salomão. Você pode mais que voltar, ir tantas vezes quiser...mas escreva, Sim❤️