Mulher feliz é ato político
“Não há nada, nada que me impeça de fazer qualquer coisa,
a não ser eu mesma.. Viver é uma coisa enorme.”
Susan Sontag, 25/05/1949
Uma das emoções mais preciosas para mim é sentir que estou no melhor lugar possível, que sou a pessoa que dei conta de ser até aqui, como se absolutamente tudo estivesse tão certo que não quero mudar nada. É uma sensação ligeira, um clique em alguma circunstância muito específica, que ajuda quando a voz carrasca fala muito alto. É meu antídoto ao supereu que maltrata. Amar a mim mesma é uma postura política diante das expectativas de que uma mulher deve viver em função de corrigir a si mesma a partir do olhar do outro. Corro o risco de ficar ensimesmada, mas, prefiro seguir por aí do que me dobrar e viver no rastro alheio.
Em todos os lugares vejo e ouço mulheres insatisfeitas consigo mesmas porque não atendem a algum padrão socialmente determinado. A indústria da beleza é um bom exemplo de como nos convencem que somos falhas e incompletas, para nos vender a fórmula milagrosa que há de nos corrigir e completar. Fico cada vez mais espantada com a criatividade do algoritmo do instagram em sugerir soluções para problemas que eu sequer sabia que tinha. E, principalmente, acho graça porque não sou convencida pelas propagandas. É inútil que me digam “você precisa, você tem que”, a análise ensinou que não tenho que nada, tudo depende da pergunta que hei de fazer.
Porém, mesmo antes da Psicanálise, vivi situações que comprovam: a socialização feminina falhou, no sentido de que não me tornei a mulher das expectativas, todo esse ordenamento simplesmente não funcionou. E compreendo que sou capaz de me amar e sustentar de pé justamente porque não me fiz a mulher que esperavam, sou a mulher que consigo ser. E ser essa mulher me faz feliz, a despeito de tudo que tentaram me provar, de como a vida é difícil e dura e de como ser mulher pode ser horrível.
Ser uma mulher feliz é um ato político porque no mundo patriarcal e misógino não há lugar de satisfação e potência para mulheres. A socialização feminina, especialmente de mulheres brancas, transforma meninas em objetos que são passados de pai para marido, um corpo alienado de si que existe para reproduzir outros corpos e produzir a vida material da família tradicional. Um corpo que não pensa, não fala, não deseja, não desobedece, apenas agrada. A maternidade sela o destino de corpo-objeto a serviço do outro, o lugar de mãe é, antes de tudo, destituído do direito de querer, inclusive sexualmente.
O amor romântico, essa cilada que dura séculos, é a cola que mantém mulheres alienadas, porque nos coloca no lugar de espera, devemos esperar pelo homem que vai nos amar e validar nossa existência de beleza e cordialidade. Na falácia romântica é através do olhar de aprovação desse outro masculino que encontraremos lugar no mundo. Eu me recuso. No espelho adiante vejo a mim mesma digna de amor e admiração porque sei que sou, a mediação alheia não tem lugar no direito de ser gente. Entregar a si o amor que esperamos a vida toda receber do outro é uma tarefa árdua, mas frutífera, como mostrou bell hooks.
Esse amor por mim mesma repousa no feminismo, que me fez reconhecer que sou gente. Ser gente é existir como sujeito, poder olhar para mim mesma sabendo que o meu vazio é o mesmo que acompanha todas as outras pessoas; não falta a mim, como mulher, nada além do que falta a qualquer outro ser humano. Essa é uma perspectiva política de amor próprio, distante da falácia que o capitalismo vende como autocuidado, não tem a ver apenas com estética, mas também com ela. Diz respeito, aprendi com Sontag e Audre Lorde, com uma erótica.
Ferrante me ensinou que livros são escritos com palavras, mas, é possível escrever histórias com o próprio corpo e até com a ausência dele. Lila escreveu com o corpo, com o desfazer das margens, com as escolhas terríveis que fez, a história que Lenu tenta registrar com palavras. Eu posso fazer as duas coisas, porque sou alguém entre dois mundos. Não sou a mulher da casa, nem a mulher de fora dela, desfaço a divisão para reconstruir o mundo como desejo. Essa é a minha solução simbólica. Sou a mulher que não existe, ainda. Ela estará no devir até que chegue minha morte, nunca a conhecerei por completo. E eu a amo, porque através dela experimento a vida, enorme.
Parabéns pelo texto, reverberou por aqui.
Gratidao!