Minha máquina de lavar está pensando em desistir e quem sou eu para julgar
Dia desses estava lavando a louça e, como de costume, coloquei um podcast para tocar na caixinha de som e uma muda qualquer de roupa colorida para lavar na máquina; eu separo os tipos de louça numa ordem que desenvolvi ao longo dos anos e que faz muitíssimo sentido – pra mim. Talheres na cuba da pia, pratos empilhados, copos num canto e xícaras no outro, panelas deixo lá em cima do fogão porque elas são a última rodada antes dos plásticos. Quando estava mais ou menos na metade da pilha de pratos – que organizo por larguras e funduras – a máquina de lavar comprada em 2016 começou um barulho diferente de sua movimentação habitual, ela não batia mais as roupas num tchá tchun tchá tchun, agora era como se o tchun estivesse mais lento, uma respiração cansada que a gente puxa depois de correr desesperada naquela esteira da academia. Foi quando entendi, a minha máquina de lavar está pensando em desistir.
O que a trouxe até aqui? Trabalhou sem trégua por todos esses anos, lavando roupas brancas, coloridas, de cama, banho e até panos de chão e tapetes, cortinas e uniforme hospitalar. Cumpriu com suas tarefas usando sabão líquido e em pó, água sanitária e amaciante de preços inversamente proporcionais à inflação. Por que, justo agora, ela está entregando os pontos? A máquina de lavar de alguma forma ganhou vida anímica enquanto eu lavava a louça, num estalo constatei: ela é uma mulher casada há uns dez anos que finalmente dá sinais de esgotamento em decorrência da sobrecarga mental.
Todo mundo conhece uma mulher assim, elas existem aos montes, nos corredores de supermercados, almoços de família e calçadas do condomínio, são aquelas que casaram na crença de que casar era mesmo a melhor opção, porque estavam apaixonadas ou porque já não aguentavam mais a cobrança ou não aguentavam mais a casa dos próprios pais. Casaram. E viveram alguns anos levando numa boa os pequenos detalhes que, assim, de longe, não pesam tanto, mas no acumulado do tempo, são como bolas de chumbo presas nos calcanhares, uma em cada pé.
A mulher-máquina-de-lavar fez de tudo para sustentar a casa, essa metonímia do feminino e das expectativas sociais sobre a feminilidade, tudo o que estava ao alcance de seu trabalho não remunerado e não reconhecido. Limpou, alimentou, guardou, organizou, consertou, tratou, cuidou. E fez sexo também, claro, faz parte do trabalho. Em troca, o pagamento social, foi esposa, que, curiosamente, também tinha um preço,o preço do lugar de ser uma mulher casada, não saía sem o marido, não usava saia acima do joelho e parou com isso de ir trabalhar maquiada.
Provavelmente foi na pandemia, diante da possibilidade de morrer asfixiada por um vírus que ninguém vê, que a mulher-máquina se deu conta de que estava exausta, es-go-tada, cansada mesmo de trabalhar pelos dois, de equilibrar os pratinhos e se satisfazer apenas em reclamar para as amigas e mandar indiretas nas redes sociais que o marido nunca entendeu. Ela queria satisfação de verdade, voltar a sentir como quando era jovem, mesmo não sendo velha ainda.
Depois de sobreviver à Covid e ao governo fascista, mergulhou em processos de autocuidado que aprendeu em várias páginas do instagram, comprou cremes e mais cremes de marcas que não testam em animais, se matriculou no spinning e fitdance, contratou um personal, descobriu que não é à toa que inventaram a gíria “lançamento” com emojis de foguetinhos. A mulher-máquina decolou! A feminilidade que parecia apagada ganhou novos contornos com o alongamento de cílios, unhas e lip tint, agora ela ia trabalhar de salto. Numa noite, depois do expediente, foi sozinha a um bar e numa voz cintilante, mentalizando Carrie Bradshaw, pediu um cosmopolitan à garçonete, senhora, desculpa, a gente só tem gin tropical, aquele com redbull amarelo. Traz, o importante é a taça.
Naquela noite, o dono da casa, assim como eu, estranhou o tchá tchuuun tchá tchuuun da mulher-máquina. Foi o drink que eu tomei, tinha redbull. Mas eu, que estava ali lavando a louça, e a vizinha que cozinhava feijão na panela de pressão enquanto o marido e os dois marmanjos-filhos coçavam o saco vendo futebol na sala, sabíamos que o som diferente da mulher-máquina não era por causa de energético.
Lá pelas três e tanto da madrugada o prédio inteiro ouviu o estardalhaço. Barulho alto e ao mesmo tempo sólido, estampido daqueles de acordar o mais profundo ronco. Um som feio, de que algo sério acabou de acontecer. Homens, cachorros, crianças e gatos se assustaram, maçanetas giraram, portas e janelas se abriram, luzes se acenderam, pescoços se esticaram para saber. Mas nós, mulheres, nos mantivemos de olhos fechados, fingindo sono. A mulher se defenestrou pela janela, deixando para trás a máquina. Ela já estava pensando em desistir há tanto tempo, quem sou eu para julgar?