Feminino Futuro
O Riso da Medusa é um texto político, teórico e poético publicado por Hélène Cixous1 em 1975 e que abriu os portões para que mulheres voassem através da escrita, convocando-as a tomar posse do próprio corpo e da palavra.
Quando o li pela primeira vez, em um grupo de discussão sobre literatura e psicanálise, fui arrebatada. Porque sinto essas palavras antes de conhecê-las, porque desde a adolescência experimento lapsos de desmarginação, instantes de desfazer dos contornos, de transformação do que é corpóreo em algo que percorre o tempo e o espaço. Isso que existe em mim, que experimento absolutamente sozinha e que na presença do outro não acontece, é parte significativa do que desejo.
Ao ser convocada por Cixous a escrever eu experimento a violência daquilo que não foi dito ainda porque o mundo foi construído à imagem e semelhança dos homens sob o nome de racional e neutro. O ensaio que ela escreveu em francês, se multiplicou em inglês e chega a mim em português, opera como eletricidade, conduzindo meu corpo rumo a outros corpos-palavra de mulheres. Uma genealogia feminina e feminista, como Ferrante me mostrou, escapando através das fraturas que a ficção política masculina não consegue esconder.
"E por que você não escreve? Escreva! A escrita é para você, você é para você, seu corpo lhe pertence, tome posse dele. Eu sei por que você não escreveu. (E por que eu não escrevi antes dos meus 27 anos)".
Cixous me fez chorar, porque faço vinte e oito anos no próximo junho e aprendi a escrever aos cinco. São mais de duas décadas de uma guerra silenciosa e particular pela autorização da escrita. A socialização feminina não deu conta de me alienar por completo, minhas rachaduras são enormes, existo como o chão de onde eu vim, entrecortada por sulcos, marcas de rios que não correm mais ou que voltarão junto da chuva. Ter um corpo fissurado, rompido, era um não saber que eu sabia. Mas consegui me apropriar disso. Foi quando tatuei uma Medusa.
Na minha história, Medusa já sabe que Perseu quer surpreendê-la e assassiná-la, porque viveu a morte inúmeras vezes, repetindo seu lugar de vítima que é escrita como monstruosa para que exista a jornada do herói. Mas minha Medusa está de saco cheio, ela quer rir. Então, na noite que Perseu chega, sob a benção de Atena, a deusa-mulher nascida da cabeça do deus-homem, que recusa e aniquila o feminino e persegue aquelas que não atendem à sua moralidade-racional-masculina, Medusa o espera. Ela está um passo a frente porque sabe do passado e deseja criar outra versão. Com uma espada persa que algum homem perdeu junto de sua vida, Medusa decepa a cabeça de Perseu. Matar antes de morrer, abrir caminho para Judite e Salomé. Medusa oferece um futuro.
Beauvoir proclama em O Segundo Sexo que “as mulheres não dizem nós”. E talvez, sua leitura da realidade social e política em 1949 estivesse quase correta. O que se testemunhou nas sete décadas seguintes foi a disputa do nós mulheres. E em muitos momentos e locais, a distribuição das poucas e insuficientes conquistas, para um eu mulher universal que silencia os corpos outros. Muitas acreditaram na ilusão de que é possível um lugar sob o patriarcado, adequada, válida, protegida. Mas essa é apenas uma outra versão da alienação moderna.
A busca por uma unidade, algo que unifique de dentro para fora é comum da razão masculina, da falácia de que existe essência passível de captura, cercamento, estabelecimento de propriedade. Ouso dizer que as mulheres não dizem nós e não precisam dizer.
Clarice Lispector anuncia que “tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. A minha vida a mais verdadeira é a interior e não tem uma só palavra que a signifique. Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade”.
Cixous a completa, como sua amêndoa gêmea philippine: “Quando eu escrevo, são todos aqueles que não sabemos que podemos ser, que se escrevem a partir de mim, sem exclusão, sem previsão, e tudo o que seremos nos chama à incansável, inebriante, insaciável procurada de amor. Jamais nós nos faltaremos”.
Então escrevo. Para dizer sim. Umas às outras, à nós mesmas, àqueles que amamos. Escrevo para matar o anjo do lar, o mito do amor romântico, a idealização do casamento. Para dar fim ao controle dos corpos femininos, à exploração da capacidade produtiva e reprodutiva. Escrevo para ser livre e rir com minha Medusa. Com ela tomei de volta meu corpo-território. Escrevo porque fui convocada.
Tornar-se uma mulher que você mesma possa amar. Abandonar o lugar de quem segura um espelho de aumento para os homens2. Praticar a autodefinição para não ser comida viva3. “Escreva-te: é preciso que seu corpo se faça ouvir”. Faz amor contigo mesma, sea una mujer fuerte4. Cixous anuncia o feminino futuro, nós não nos faltaremos.
Dia 16 de fevereiro participei do lançamento do livro O Riso da Medusa promovido pela livraria Gato Sem Rabo em parceria com a Bazar do Tempo. Fiz a mediação da conversa entre Tatianne Dantas e Emanuela Siqueira, duas pesquisadoras incríveis que abrem caminhos. Tá disponível no youtube nesse link.
Virginia Woolf em “Um teto todo seu, pág. 54: “as mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural”.
Audre Lorde em “Sou sua irmã”, pág. 89: “sempre haverá alguém tentando usar uma parte de vocês e, ao mesmo tempo, as encorajando a esquecer ou destruir todas as outras. E aí vai um aviso: isso é a morte. A morte como mulher, a morte como poeta, a morte como ser humano”.
Gioconda Belli em “Consejos para la mujer fuerte”.
Feminino Futuro
UAU me socou, Ananda😱
E me afagou:
'minha vida a mais verdadeira é a interior e não tem uma só palavra que a signifique.'