Em homenagem às mulheres que sabem que são inteligentes
#01/2024 Joan Didion me fez rastejar até Belém
Essa semana eu estava lendo Joan Didion e tive, mais uma vez, uma epifania. A mulher simplesmente começa um texto dizendo que “os únicos jornais norte-americanos que não me dão uma profunda convicção física de que o oxigênio do meu cérebro foi cortado...”. Assim, com sarcasmo e acidez, sem titubear. Ela fez críticas que poucos conseguem fazer, de um modo tão sagaz que os alvos de seus textos poderiam até achar que se tratava de um elogio bem escrito. Não por acaso, o título do livro é “Vou te dizer o que penso”, que designa tão bem a seleção de ensaios que ela escreveu entre 1968 e 2000, traduzidos para o português brasileiro por Mariana Delfini.
Mesmo com o passar do tempo e das leituras, não deixo de me surpreender com a confiança que ela tinha na própria caneta e como escrevia sem medo de parecer arrogante, vaidosa ou petulante. Ela era destemida, apesar de tão pequena, e escreveu o que muita gente não sustentaria falar em voz alta.
A paixão por Didion nasceu quando Elena Ferrante lá em 2020 fez a lista dos 40 livros preferidos dela que foram escritos por mulheres (se você não conhece essa lista, pega aqui o link), como eu tenho lua em virgem e sou um tanto obcecada por listas, organizei, obviamente, uma planilha no excel e comecei uma busca que ainda não terminou, nem sei se vai mesmo terminar.
Nas pesquisas, descobri que a obra recomendada da Didion era uma história triste, O “Ano do Pensamento Mágico” tem uma sinopse de fazer qualquer um chorar. E simplesmente havia uma pandemia, morte por todos os lados e um contexto político que não apenas me sufocava, impedia de ver futuro. Nenhuma chance de ler algo sobre perda, sofrimento e morte. Mas aí descobri “Rastejando até Belém” (trad. Maria Cecilia Brandi), um livro de ensaios, quem sabe, vou tentar.
Fui arrebatada. Tive uma reação física ao final do texto homônimo, levei um choque, fiquei ser ar, como aquela mulher conseguiu fazer isso através das palavras? Era inacreditável, nunca havia lido algo parecido, talvez o mais próximo era Sontag, mas não tinha o mesmo efeito, esse corte rápido. Susan Sontag tinha uma faca afiada, mas era lenta se comparada ao que Joan Didion fez comigo. Quis ler tudo o que ela escrevera até ali, torcendo para que escrevesse mais, apesar da idade.
Mas, em 23 de dezembro de 2021 ela se foi, e eu tive de escrever sobre a estranha coincidência de que a protagonista de “A filha perdida”, filme baseado na obra de Elena Ferrante lançado em 1° de janeiro de 2022, recitasse o mesmo poema do qual Didion tirou o título do ensaio-livro que lhe deu fama. Me pareceu uma homenagem ao acaso, que fiz questão de registrar. Aqui o link do texto que escrevi à época.
De lá pra cá, li muito do que ela deixou. O texto “Sobre o amor próprio” se tornou um hino na vida que tenho construído, condensa o esforço dos últimos anos, desde quando entendi que o meu valor como ser humano não está na validação alheia, muito menos em agradar aos outros, mas que a própria condição de ser gente me garante um dom intrínseco de existir. Ela não escreveu para mim, mas se tornou meu, um texto inscrito nas raízes do corpo e do qual lembro sempre que necessário, sempre que preciso defender minha própria humanidade.
“Nos libertar das expectativas dos outros, nos entregar de volta a nós mesmos — aí reside o poder imenso e singular do amor-próprio”.
Joan Didion em “Sobre o amor-próprio”, texto de “Rastejando até Belém”, trad. Maria Cecilia Brandi.
Só depois de conhecer a Didion cronista encarei “O Ano do Pensamento mágico” (trad. Marina Vargas) e foi melhor ter lido quando já havia vacina para Covid-19, acho que eu não teria dado conta de atravessar tantas páginas de uma experiência que é dor lancinante, sem trégua, sem pausa. Assim, dei conta de seguir com mais sofrimento, “Blue nights” (trad. Ana Carolina Mesquita) fez silêncio aqui dentro, lembro de ficar estatelada na sala de casa olhando para o nada. Me pergunto como é possível alguém escrever sobre coisas tão terríveis, perder o homem e a filha, restar sozinha no mundo e ainda assim, permanecer viva. Os dois livros registram algo do que parece indizível e, por isso mesmo, reviram do avesso quem ousa adentrar esse terreno sem contornos que é o vazio.
Mas ela também me fez rir e admirar sua perspicácia. Eu amo mulheres que sabem que são inteligentes e não têm vergonha disso, mulheres que não seguram mais o espelho de aumento para homens que Virginia Woolf denunciou em “Um quarto só seu” (trad. Júlia Romeu), que recusam o lugar de eterno objeto e experimentam ser o que desejam, se movimentando pelos laços que criam e reinventam a vida. Joan Didion foi uma criatura excepcionalmente astuta, que lia o mundo para escrevê-lo e ofereceu a nós, leitores, páginas e páginas de histórias que revelam o que há de intrigante no que parece comum, pela maneira singular de contar.
E ela tinha algo caro à literatura e à arte em geral, conseguia traduzir o mundo em que vivia, seus livros são um registro do que não se escreve, do que é difícil de falar, e que nunca vai caber exatamente em palavras, o tal espírito do tempo, isso que só depois sabemos, ela conseguiu captar enquanto acontecia.
Eu poderia escrever muitos outros parágrafos falando dela, mas acho que esses já dizem repetidamente o quanto gosto do que Didion escreveu. Obrigada Elena Ferrante (que vocês já sabem ser o pseudônimo, não é?), se você não tivesse indicado, eu provavelmente levaria muito tempo para descobrir. Então, retribuo divulgando também. Leiam Joan Didion, vale a pena.
O que tô lendo:
Voladoras, de Monica Ojeda e tradução de Silvia Maximini Felix, para o Ciclo de Estudos “Escrita, Feminismos e Psicanálise” que medio com as amigas Tatianne Dantas e Emanuela Siqueira. Link para informações e inscrições, aqui. Está sendo uma experiência e tanto, dela eu já havia lido “Mandíbula” e acabei escrevendo a partir dele o trabalho de conclusão do semestre sobre perversão na Escola de Psicanálise. Qualquer dia perco a vergonha e compartilho esse texto também.
Diários II, Susan Sontag, tradução de Rubens Figueiredo. Eu tô lendo esse há não sei quantos anos, e gosto que basicamente leio quando lembro. O vol 1 foi mais rápido, mas esse é quase que um oráculo e me faz pensar muitas coisas sobre o que é ser uma mulher que pensa.
A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr, tradução de Diogo Cardoso. Fiquei animada quando comecei, mas não deslanchou, tenho lido aos sábados de pedacinho, mas sou uma leitora faminta que devora as coisas, não sei se está funcionando. Talvez seja justamente uma oportunidade para aprender a ler devagar. A ver.
O que li:
Desde dezembro passado estou com um projeto de ler os livros em português brasileiro da Marguerite Duras. No instagram falei sobre Moderato Cantabile (trad. Adriana Lisboa), tá nos stories de leituras de 2024. Pretendo ler Hiroshima meu amor (trad. Adriana Lisboa) nas próximas semanas.
Trilogia Autobiografia Viva, Deborah Levy (trad. Rogério Bettoni). Eu amei, foi como tomar café com uma amiga mais velha e escutar suas histórias de vida. Recomendo para quem está em busca de uma leitura sem arroubos ou fortes emoções, quer apenas ler algo antes de dormir sem ter sonhos muito loucos.
Uma mulher, Annie Ernaux (trad. Eduardo Saló). É o livro sobre a mãe da Ernaux, e acho que escrever sobre a mãe é quase que um teste de fogo para escritoras. Ela já havia escrito sobre o pai, quando ele morreu, fez o mesmo quando da morte da mãe. E o resultado é um livro que consagra o estilo que ela inventou ao longo das décadas, manuseando uma matéria ainda mais antiga.
Mais duas dicas:
Na Netflix tem um documentário sobre a Didion, “The center will not hold”, aqui o link.
Andrew Bird, artista que gosto muito, fez uma canção em homenagem à Didion, aqui o link.
tb amo Joan Didion, mas ainda prefiro Sontag.