A guerra dos sexos revisitada
Junte algumas mulheres que se relacionam com homens e você vai ouvir os dramas decorrentes dessa experiência ao mesmo tempo pessoal e coletiva. As redes sociais estão repletas de registros de temas muito caros ao debate feminista atual: os limites da desconstrução masculina e as dificuldades que mulheres enfrentam com suas jornadas múltiplas de trabalho dentro e fora de casa. E as duas questões se entrelaçam para muitas de nós.
O livro de Renata Corrêa, “Monumento para a mulher desconhecida” traz em alguns de seus ensaios reflexões sobre as adversidades dessa experiência, localizada principalmente entre mulheres millennials urbanas. É difícil escapar do tom de consumação, porque parece improvável que o homem moderno vá além do que já vimos e atravesse o umbral da masculinidade que se sustenta na exploração de mulheres. E mais impossível ainda que mulheres tenham liberdade criativa sendo as principais responsáveis pelo cuidado.
Isadora Sinay publicou há algum tempo “Em que mais uma vez eu odeio um homem da Elena Ferrante” e não por acaso, conversa muito com o que escreveu Renata. Escutei o texto de Isadora com cuidado, com meu tímpano de cientista política e as bordas de quem começou a estudar psicanálise. Mas, parece que ela tem razão, para as mulheres de nossa geração que se relacionam com homens e que tiveram acesso à autonomia econômica e intelectual, tem sido raríssimo viver relacionamentos em que sejam verdadeiramente apoiadas por seus companheiros.
A impressão que tenho é que enquanto mulheres têm pressa e fome por realizar o que ainda não foi feito, homens, além de assustados, estão convencidos de que assistir de longe é suficiente, e pior, que não atrapalhar é ser “desconstruído”. As mulheres estão insatisfeitas porque queremos muito mais, porque tudo nos foi negado. Mas, diante de recursos limitados, ao invés de dividir, homens fingem que nos aplaudem enquanto garantem seus privilégios.
Ano passado, ao ler o texto de Marcia Rangel no livro “Mulheres, poder e ciência política” que mapeia as pioneiras da área no Brasil, fiquei absolutamente chocada por constatar que muitas das grandes referências de cientistas políticas no país não tiveram filhos e boa parte delas reconhecia que era uma escolha “ou isso ou aquilo”. Não dava para ter ao mesmo tempo uma carreira acadêmica de sucesso e filhos, poucas arriscaram essa vida dupla. Eu luto pelo direito de não ter filhos, mas, acho que é direito também tê-los; considero cruel que tenhamos que escolher enquanto homens podem ter ambos justamente porque mulheres garantem a manutenção da vida doméstica.
Temos um bode no meio da sala: homens estão dispostos a fazer por suas companheiras o que mulheres têm feito há séculos? É uma conta social que não fecha, meninas com acesso à educação são criadas para o script “estudar, graduar, conseguir emprego, casar e ter filhos”. Antes, estudar não era um pré-requisito, mas, uma das transformações do capitalismo na segunda metade do século XX foi justamente que a família tradicional deixou de ser sustentada apenas pelo homem provedor e as mulheres passaram a contribuir também com salário, além do trabalho doméstico não remunerado. Agora, temos etapas antes do casamento que são socialmente determinadas e garantem bonificação.
O problema desse plano é que muitas meninas que puderam estudar e almejar uma carreira, descobriram que, agora mulheres, desejam realizar-se profissionalmente, estamos com fome e pressa de realização, como eu disse. Mas, o casamento segue como ingrediente principal da receita de felicidade moderna, é aí que a coisa azeda. Como se realizar profissionalmente vivendo um casamento do século XX? O casamento do século passado foi desenhado para que mulheres trabalhassem apenas em casa, é um problema de origem.
E o resultado é a frustração. De todo mundo. E, ouso dizer, um sofrimento ainda mais dramático para mulheres artistas. Na chamada segunda onda feminista, anos 60 e 70, muitas mulheres evidenciaram as dificuldades, a literatura de Elena Ferrante capturou bem e por aqui, Clarice Lispector. Clarice escreveu com sua própria vida os obstáculos que o casamento e a maternidade impõem a uma mulher que deseja criar, e ela não quis abrir mão especialmente do lugar de mãe. O episódio sobre sua vida e obra na série “Elas no singular” me chamou atenção pelos efeitos da experiência até mesmo em sua aparência, nas fotografias é possível perceber o olhar que se desfaz entre o casamento, maternidade e divórcio.
Vocês conhecem alguma mulher que tenha certeza de que suas vontades profissionais, especialmente artísticas, não colocam em risco o amor ou a vida familiar, a maternidade? De carne e osso conheço poucas; elas são raras. O comum é que mulheres que se relacionam com homens tenham de escolher entre si e o outro para acessar o que é garantido a eles como seres humanos. Acho que fomos enganadas. Era uma armadilha boba, tal qual um desenho animado, um prêmio sob uma gaiola, quando você coloca a mão para pegar, a gaiola cai e o ferro te amputa o braço. O prêmio é o amor romântico, a gaiola, o casamento e seus efeitos assassinos contra a libido. E o braço, bom, para cada uma é uma coisa diferente, pra muitas é o criar.
Tenho a percepção de que porque temos registros históricos de casais marcados pela exploração da mulher pelo homem, não há parâmetro algum para o que seria o diferente disso. Num exercício lógico seria o contrário, uma mulher que conseguiu criar porque explorava seu marido. Mas soa inverossímil, a história registrou apenas maridos “dedicados”, ainda não ouvi falar do inverso exato. E essa é a chance que temos, porque a saída não é pelo oposto.
É uma frase lugar-comum, mas, serve de guia: feminismo é a ideia radical de que mulheres são gente. Lembro sempre disso. Ser gente significa poder criar, não ter de abdicar do erótico em si (nos sentidos de Audre Lorde) para que apenas o outro viva seus desejos. Não é por acaso que o casamento até pouco tempo tinha efeitos jurídicos de tutela, transferência da tutela paterna para marital. Mulheres têm sido usadas como recursos há milênios e o último século ainda não foi suficiente para transformar as profundezas disso.
Ser gente é um caminho trilhado passo a passo por cada mulher, mas, ao mesmo tempo, por todas as mulheres. Por isso se constrói a estrada para que outras possam pisar. Entendo aquelas que tiveram de escolher ou isso ou aquilo, graças a elas posso querer mais, sabendo que nunca terei tudo. Não quero tirar nada de ninguém, não me apraz que o outro abdique de si, quero apenas ser gente. Ser gente é lidar com a incompletude, com a falta, porque faz parte da vida, o que desumaniza é a alienação de si. No mundo das mulheres a escassez se transforma em abundância porque a lição é justamente romper com a lógica de exploração e não somente invertê-la.
Marina Abramović e ULAY. Rest Energy. 1980, MoMA
A guerra dos sexos revisitada
Ou isto ou aquilo. Ou se tem chuva ou se tem sol...
Bem na cabeça!
Mas às vezes há casamento da raposa Rrss